
Já que hoje é 12 de março, Dia do Bibliotecário, compartilho um dos meus contos, publicado em “Pancadas”, sobre uma colecionadora de livros e sua biblioteca:
A COLECIONADORA DE LIVROS
A biblioteca, localizada em Lisboa, tinha mais de cinquenta mil volumes, divididos por assunto, nacionalidade do escritor, e subdivididos em ordem alfabética. O acervo era o trabalho de uma vida inteira pesquisando e caçando os mais variados exemplares. É de se supor, ou até mesmo evidente, que dentre os livros encontraríamos primeiras edições, manuscritos de séculos atrás etc. Papiros de uma das dinastias assírias? Sim. Calhamaços de tratados e encíclicas da Idade Média? Também. Títulos e mais títulos de poetas portugueses dos séculos XIX e XX? Claro que sim. Quando adentrei o recinto lotado de livros pela primeira vez, senti-me pequeno e extasiado, simultaneamente.
Mas quem era a bibliófila responsável por essa coleção livresca? Quem gastou, investiu, empenhou e dedicou exatos sessenta e três anos, oito meses e nove dias para juntar e organizar uma das bibliotecas mais diversificadas e completas do mundo? Albertina era seu nome. Albertina Silveira Queirós. Foi ela mesma quem me recebeu ao abrir a porta. Passamos pelo suntuoso e espaçoso hall de entrada a caminho da tão afamada biblioteca. Em meio a tantos livros e documentos excepcionais, contou-me, a goles de xerez, como adquiriu coleção tão diversa e raríssima.
Em uma das entrevistas que deu para a TV local, logo que começou a ficar famosa por sua gigantesca biblioteca particular, confidenciou o porquê de sua devoção pelos livros. Ela me repetiu as mesmas palavras:
— Aprendi a não contar com as pessoas. Um dia elas podem faltar. Conte com os livros. São companhia, sempre ao seu dispor.
Não se sabe se era por causa da vasta leitura, aplicada todos esses anos de forma exemplar, mas a senhora lisboeta parecia falar por máximas. Suas frases tinham substância e profundidade, mesmo as mais corriqueiras. Foi criada em uma família portuguesa abastada, frequentou os melhores colégios e propôs a si mesma uma meta: criar sua Biblioteca de Alexandria particular. Se não foi tão grande quanto a original, no Egito, também não foi pequena. As demandas e necessidades da sociedade atual fazem dela, julgo eu, ainda mais importante que a primeira. Sua coleção de livros era conhecida internacionalmente, inclusive por estudiosos, que a procuravam para poder ter acesso a alguns originais que só lá encontrariam.
Viúva e sem parentes próximos, ela também já manifestou diversas vezes sua opinião sobre as relações afetivas:
— Não digo para não amar as pessoas, mas cultivar o desprendimento é fundamental, principalmente na velhice.
Outra máxima! Não disse?
Entre piscadelas e mais goles, dessa vez de um finíssimo vinho do porto, a refinada senhora discorreu sobre diversos assuntos: literatura, filosofia, política. Exibia-se a si mesma como alguém que cultiva uma visão cética e pragmática da vida. Inclusive fazendo citações de canções populares:
— Já ensinava o fado: “Por morrer uma andorinha, sem amor, não acaba a primavera, diz o povo”.
Conversamos por horas. Ao final do entardecer, com as últimas luzes solares a atingirem seu rosto, pude notar melhor as olheiras, as marcas de expressão salientes. Seu semblante parecia cansado e abatido. Julguei-a com um ar enfastiado, como quem já viveu e viu de tudo um pouco e se entediou. Assumiu que dera para beber ultimamente. Confidenciou-me que trocaria, ou até mesmo queimaria, todos os livros que tem por um amor verdadeiro, um gesto lisonjeiro ou um afeto sem dissimulação. Fui-me embora com um nó na garganta. Será que isso é envelhecer? Não me pareceu nada promissor.
Ao abrir a porta, da segunda vez que me recebeu, na semana seguinte, recebi um balde de água fria. Foi como ganhar uma pancada que nos desnorteia os sentidos e bambeia as pernas. Ela havia mudado, completamente. Era outra pessoa. Altiva e distante. Os gestos, outrora expansivos e calorosos, esvaíram-se. Em seu lugar, apresentou-me movimentos contidos e calculados. O efeito do álcool com certeza havia passado, concluí. A ressaca moral, seguida possivelmente de vergonha e acanhamento, moldou seu novo comportamento. Limitou-se a me olhar esnobemente, de soslaio e sem vontade, e perguntou-me:
— O senhor, o que deseja?
Fiquei arrependido de ter vindo, e repreendi a mim mesmo, mentalmente, por não ter à mão nenhuma bebida alcoólica para oferecer à colecionadora de livros que tanto me agradou na primeira vez que estive em sua casa. Quem sabe tivesse aceitado. O rumo da conversa seria outro. A bebida teria azeitado o diálogo que tivemos, que na falta do álcool, fez-se curto. Ela alcoolizada, embebedada, embriagada era ela mesma; ela sóbria, alguém que eu não reconhecia. Era o que eu queria acreditar.