Roseada infância

Foto por Kat Jayne em Pexels.com

“Amor é a gente querendo achar o que é da gente.”
GUIMARÃES ROSA

Lá pros lados de um dos afluentes do rio São Francisco, bem no meinho do sertão mineiro, num vilarejo escondido do tempo, vivia tal menino. Mas que menino era esse? Era conhecido como o endemoniado. Diziam até que recebia o dito cujo. Só sei que João, o Jão Cramunhão (essa era sua alcunha entre os que o conheciam), crueldades tinha feito. Matava bem-te-vis, judiava de jaburus, e se ocupava de tantas mais que se pode imaginar.

Houve uma vez, quando com outros meninos brincava que, ao se desentender com Ticiano, seu amiguinho de infância principiada, armou-se de um pau, madeira de carnaúba, e, só de maldade, acertou-lhe as costas. Ficou-se sabendo depois que o garoto aleijado ficou. João parecia que não tinha amor no coração. Diabo menino.

Era estranho! Tinha ele pai trabalhador e mãe cheia de amor. Como podia guri assim existir? Ah, vida difícil! Tonho, seu pai, acordava todo dia de manhãzinha, para de peão se ocupar, e garantir sustento seu e de sua família. Sua mãe, chamada Maria, cuidava da casinha velha onde moravam.

Quando Tonho saía para labutar, e seu filho para ajudar com os bois, a pobre mãe ficava sozinha, e ponderava ao se ocupar dos afazeres domésticos. Matutava como Joãozinho poderia ter um futuro mais vantajoso, sem precisar se acostumar com a miséria e o sofrimento. Desejava que se tornasse doutor. Mas o danado do menino com isso não se preocupava. Mesmo passando por muitas provas, que desgastam e desgostam a alma, toda família mantinha uma certa ingenuidade. Uma sem graceja até.

Um dia, porém, do alto do chapadão, passando por entre capins altos e veredas, pistoleiros chegaram, em bando, armados até os dentes, à humilde casa da família, querendo comida e água. Esbarraram por causa da extensão da viagem, já muito alongada. O trajeto até ali deve de ter sido muito cansativo. A senhora, prestativa que era, foi logo ajeitando o pedido, para confusão não arrumar e a paz se manter.

A jagunçada puxava prosa intencionando informações. A família desconversava, com receio do que pudesse ser dito. Afinal, já abrigara Zé Honorato, chefe de jagunços rivais. Os capangas insinuaram levar a mãe, mulher casada e direita, para satisfação de desejos do bando. Houve algazarra, desentendimentos e pancadaria.

Tiros foram disparados, a mulher então gritava de desespero.

— Acode minha famía, minha Virge Maria!

O sangue escorria quente pelas maltrapilhas roupas e pingava como gotas de chuva, depois que a tempestade já havia se acabado.

Era ou não era sangue de homem? Era sangue de menino homem. Pois que para proteger seu pai, escudo dele João se fez. Já estava no chão, quando sua mãe correu em sua direção para lhe segurar a cabeça. Os feitores, quando se aperceberam do sucedido, tocaram seus cavalos e saíram em retirada, num galope só.
Pai e mãe desataram a chorar. Tonho tinha uma dor contida, própria de quem tem costume com os desgostos da vida. Maria, ao prever a perda do filho, fazia-o sofridamente.

— Carece de entristecer não, mãe! Morrer por pai e mãe é justo e bonito que dá gosto! Minha travessia há de ser sossegada.

Fez-se o velório então. Toda a aldeia se juntou para o casal confortar. Parecia que ninguém mais lembrava quem fora João, o diabo menino. Ou, se lembravam, achavam que quem morreu era já outro pequeno, mudado. Chamaram-no Joãozinho de Deus.

Para a feitura da cerimônia usaram-se rosas, pois só naquele lugar, sem explicação aparente, crescia roseirais extensos e vistosos. Coisas do sertão!

Durante a procissão (quem entoa canção empurra o tinhoso para longe! Será?), se algum dos habitantes olhasse em direção à Serra Monte Alegre, veria o arco-íris que se formara no entre morros. Talvez fosse um sinal, não sei. Só sei que desse lugar incerto, de vida tortuosa, de Deus e do diabo, uma linda cena não esquecerei.

Entre reses, rezas e rosas: rosearam-se todos.

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