
Seu João, como de costume, chegou ao seu ponto. Estava todo maltrapilho, cheirava mal, e mancava de uma das pernas. Ao se sentar, deu um gemido e deixou à mostra o pote para receber as doações. Como o dia estava frio, quase ninguém notava sua presença no canto da calçada.
Já mendigava há anos. Passou pela hiperinflação dos anos 1980, pelo ajuste do Plano Real na década seguinte, e pelas flutuações da moeda que vieram posteriormente. Mesmo com os altos e baixos de sua “profissão”, sobreviveu. Não só sobreviveu, sustentou a si e aos seus: tinha mulher, Laura, e dois filhos, Bruno e Bianca.
É verdade que a esposa também comparecia financeiramente. Mas, por incrível que pareça, ou não, a maior parte da renda familiar era proveniente do que o pedinte profissional angariava.
Depois de mais um “expediente” na rua, decidiu voltar para casa. Em comparação com os outros dias, seu ganho foi mediano. Guardou as notas e moedas em um saquinho com cordão que provavelmente já abrigara um terço antigamente, levantou-se com dificuldade e seguiu seu caminho.
Chegando em casa, um milagre! A perna do coxo foi desentortando, até ficar boa. Ao passar pela porta de entrada, avistou Bianca na sala:
— Oi, minha filha!
— Oi, pai.
— Cadê sua mãe?
— Já saiu pra trabalhar.
— E o seu irmão?
— Ainda não voltou da faculdade — respondeu a moça com enfado.
— Que cara é essa, Bianca?
— Cara de quem está inconformada. O senhor não cansa de enganar os outros não? Já não deu essa história de se fingir de coitado para ganhar uns trocados?
— Ora, minha filha, pois fique sabendo que foram “esses trocados” que me permitiram comprar as coisas pra você e seu irmão. Quando vocês eram pequenos, não ouvi ninguém reclamar de onde vinha o dinheiro.
— Na época nós nem entendíamos direito o que o senhor fazia. Por um tempo achamos até que era só uma brincadeira.
— Pois não era e continua não sendo. É o meu ganha-pão.
— O senhor podia procurar formas mais decentes e honestas de fazer dinheiro. O senhor nem doente está, e esse negócio de usar roupas molambentas quando o senhor tem boas roupas, e se emporcalhar de propósito, é uma insanidade. Aliás, vá tomar banho, que já não estou aguentando esse fedor!
— Faz parte da caracterização, a senhorita bem sabe. Não entende o que eu sou? Sou um artista! E sou eu quem está fazendo caridade, minha cara.
— Essa é boa! O senhor fazendo caridade? Como?
— Vivemos num mundo cada vez mais caído. As pessoas nem se notam mais. Minha presença é um lembrete aos que passam de que há sempre alguém em necessidade, e precisamos nos apiedar dos que sofrem.
— Mas aí é que está, pai. O senhor não é indigente e nem está sofrendo de verdade!
— Todos nós somos miseráveis em alguma medida, minha filha. Quando alguém me dá algum dinheiro, uma moeda que seja, há um milagre invisível ocorrendo. Essa pessoa saiu de si e reparou em outro, no caso eu, mas esse não é o ponto. O que importa é que ela abandonou o ego, mesmo que por um momento. Ela se abriu e acolheu um semelhante.
— Mas é falso o que ocorre ali. É mentira!
Não é mentira para quem está doando. Além do mais, nem toda mentira é má. Lembra do nosso grande Nelson Rodrigues? Pois então, sigo o seu conselho: “Mintam, mintam por misericórdia!”
— Que Deus tenha piedade do senhor…
— Ele terá, você vai ver!
Muito bom! Gostei 🙂
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