Voo de passarinho bobo
Batendo asas sem parar;
O falso semeado, solto,
Dissolvido em alto-mar.
Rasguei-me inteiro ontem
Sufocado em vinho morto;
Vísceras ardendo, o totem
Que guardei agora é torto.
Palato emitindo cantos,
Altar envolto em brumas ocas...
O templo do Espírito Santo
Subsiste aqui: veredas mortas.
O encanto das flores, envoltas em lodo, clama aos céus!
Como pode, do fétido barro, brotar tão singular beleza?
Ascese dos sentidos em meio ao caos deveras sufocante:
A dor e o mal transfigurados em entes sãos, puros e alados.
Somos todos lírios na lama,
Tão somente lírios na lama,
Nada mais que lírios na lama,
Até à morte... lírios na lama.
Assim como Nelson Rodrigues, tenho meus assuntos que se repetem de tempos em tempos. Um deles é o que acontece comigo em minhas viagens de metrô. Nesta semana, estava eu lendo meu Nelson — pra ser mais exato o livro O óbvio ululante — quando fui abordado por um moço alto, com cabelo bem curtinho, cortado à máquina, de tom entre o loiro e o ruivo.
Ele começou falando comigo em inglês, me dizendo que desceria na próxima estação — estávamos entre as estações Ana Rosa e Paraíso. Aí emendou, já em português com sotaque, que gostou da minha camiseta. Eu estava usando uma com o Dostoiévski estampado na frente. Mal dava pra ver a imagem do escritor, já que costumo usar a mochila junto ao peito quando estou dentro do vagão. Mas ele viu que se tratava do autor de Crime e castigo, e disse, com contentamento: “Sou russo” (com o erre pronunciado de forma branda, como em “caro”).
Se o rapaz ficou contente em avistar um brasileiro homenageando um dos escritores mais conhecidos da literatura de seu país, eu também fiquei contente em ser abordado de forma tão espontânea e genuína. Tive até a impressão que, em outras circunstâncias, com mais tempo para conversar, nos tornaríamos amigos, irmãos em literatura.
Já escrevi anteriormente sobre metrô, minha relação com a Rússia, Dostoiévski e Nelson Rodrigues. Desta vez, todos esses assuntos se mesclaram, como a indicar que coincidências nem sempre são frutos do acaso; ou seja, houve o que Carl Jung chama de sincronicidade. Será sinal para algo além?
Andando em círculos:
Perseguindo a Glória sem a Graça.
Ó Orgulho, que tudo corrompe,
Deixa-me!
Retomo minhas horas
E elas nem são minhas.
A eterna busca de ser melhor;
Um pouco melhor;
Infinitesimalmente melhor.
Extenso caminho a percorrer
E só tenho uma bússola com defeito.
O toque dos raios de sol na pele,
Ainda adormecida, conforta.
Mas há a solidão que chega mesmo
Quando o sol brilha e nos aquece.
É a consciência gritando:
Mas isto tudo é um absurdo!
Uma guerra ocorre neste instante
Mesmo estando encoberta.
O senhor do mundo está à espreita!
Armai-vos com o terço há muito
Esquecido e lutai sem esmorecer
Até que o mal em vós pereça.
Envolto no sangue que sujou tuas mãos
E corporificado com palavras desejosas:
Fui dado à luz.
Plantaram-me, pequena semente assombrosa
Guardada a custo em solo rútilo
Que me abrigou.
Numinosa realidade:
A vida lateja sem cessar
Até que não mais o faça
E outra tome o seu lugar.
Ira misericordiosa que transpassa o coração:
Arrebatamento envolvente dos sentidos!
Prostração ao que é puro e decidido;
Força motriz a conduzir o pobre e o são.
O que me foi dado não posso devolver,
Mas compartilho a escassa colheita
Que com minhas mãos, outrora avarentas,
Ousaram lavrar em tão doce entardecer.
Fogo purificador que queima a iniquidade
E abrasa a alma na presença do Altíssimo!
Calorosos louvores entoados em uníssono;
Viver é mesmo um rasgar-se e remendar-se.
Chesterton já disse que quem deixa de acreditar em Deus passa a acreditar em qualquer coisa. David Foster Wallace, por sua vez, já afirmou algo parecido, apontando para o fato de que é melhor venerar entidades espirituais ou princípios éticos do que coisas como o Dinheiro, que vão nos comer vivos. Ou servimos a Deus ou a Mamon. E certamente não sirvo a Mamon.
Por isso, considero ostentar riqueza um ato ofensivo, obsceno. Vou além: quem avalia a si mesmo ou aos outros pelo tanto de dinheiro que tem é um ser abjeto. O que não quer dizer que demonizo o dinheiro, a riqueza material em si.
Não há problema nenhum em se ter um patrimônio e buscar mais do que se tem. O problema é isso se tornar o centro de nossas vidas. É vivermos em função dessa busca. É torná-la nossa prioridade. Ainda pior, é sentirmo-nos seres humanos melhores pelo fato de termos mais dinheiro. Aí está o absurdo.
O dinheiro como moeda de troca foi um grande, se não o maior, avanço econômico da história humana. Mas nossos bens só valem pelo bem que proporcionam de fato a nós e aos outros. A abastança não é vil, mas pode ser instrumento de vilificação daqueles que a idolatram. Tornamo-nos vis ao adorar o falso deus Dinheiro. Façamos a nossa fortuna, mas que ela nos sirva, e não nós a ela.
Se por um acaso parecer que escrevo de forma hiperbólica, é que venho lendo bastante Nelson Rodrigues ultimamente. Devo estar sofrendo — ainda bem! — alguma influência do nosso Dostoiévski brasileiro.
Imagine uma floresta frondosa, com árvores de várias espécies e tamanhos, assim como plantas rasteiras e arbustos compondo o quadro visual. Repare em sua exuberância, sua gradação de cores e formatos. Agora mude o cenário: pense em uma única muda em meio a um solo seco e craquelado ou mesmo uma única flor nascendo no asfalto.
Perceba que no primeiro ambiente, carregado de vida, é mais difícil notar cada vegetal individualmente. O “excesso” da paisagem nos anestesia da importância de cada espécime para a formação do todo. Já nos outros lugares, inóspitos, percebemos a força da planta ou flor que, apesar do ambiente hostil, consegue se sobressair e afirmar sua existência.
Agora façamos uma analogia. A floresta é como nossa sociedade, apinhada de gente. Nunca houve tantas pessoas vivendo juntas como hoje em dia. Em nossas aglomerações também é uma tarefa árdua notar cada vida individualmente, mas todas têm sua importância e participam na feitura da realidade. Por outro lado, alguém que porventura resida em um ambiente isolado ou praticamente inabitável talvez tenha uma consciência maior do quanto vale uma vida. E o ponto é: todas as vidas importam, por mais incipientes que sejam.
Ver a muda que cresce, apesar das adversidades, é algo que dificilmente alguém não veja como belo, ou mesmo poético. E estou falando de uma vida vegetal. Como não ter pelo menos o mesmo apreço ou um afeto ainda maior pelo feto que, se nutrido, crescerá e afirmará sua individualidade também? Como pode alguém amar a planta em potencial que se desenvolve mesmo quando o entorno não coopera e não amar os seres humanos em potencial que são indesejados, tolhidos da possibilidade de existir?
A diferença elementar na pobre comparação entre plantas e seres humanos é que as primeiras podem sobreviver sem a ajuda de suas semelhantes, mesmo nos estágios mais iniciais de sua existência. Não podemos dizer o mesmo da espécie humana.
Como posso ser eu mesmo
Se não sei quem sou.
O recomeço diário a que me entrego
Só pode advir do amor que recebo sem merecê-lo.
Ah, ilusões de uma vida mal vivida!
Deixem-me em paz!
A história que até aqui escrevi está incompleta;
A parte que falta se esconde e me escapa.