Ser humano x humanidade

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Passei boa parte da minha modesta existência em meio a um conflito interno: admirava a humanidade — por tudo que já conquistou e pelo que ainda pode alcançar —, mas não suportava as pessoas de verdade, de carne e osso. (Exagero em benefício do estilo e da intenção do texto). Claro, quando escrevo “humanidade” fica evidente que estou me referindo a uma generalização, um conceito. Não conhecemos nem uma ínfima parte de todos que existiram, existem ou existirão para formar uma acepção minimamente condizente com o que chamamos “humanidade”. Entretanto, usamos o termo do mesmo jeito.

Assim sendo, foi-me sempre um desafio conciliar essas duas afirmações contraditórias. Já tinha a noção de que o conflito, na verdade, era entre o real (o que de fato é) e o ideal (o que acreditamos ou queremos que seja). Percebem que poderia discorrer sobre a Teoria das Ideias de Platão agora para dar uma encorpada na minha argumentação? Como não estou seguro se explicaria com clareza e simplicidade que o tema exige, fica para uma outra vez…

Volto à parte que pode ter desgostado você, caro leitor, de temperamento mais sensível — seres humanos de verdade incomodam: ficam na nossa frente quando temos pressa; ocupam espaço onde já nos sentimos acuados; contradizem e confrontam todas as nossas crenças. Isso sem contar aqueles que acreditam em absurdos; que cometem atrocidades. A lista poderia se estender por muitos e muitos parágrafos… Resumindo: conviver com as pessoas é um desafio diário, às vezes mais fácil; outras mais difícil. O que salta aos olhos é a constatação de que o conhecimento, mesmo que rudimentar e difuso, sobre um ser humano em particular já vale mais — e é mais verdadeiro e contundente — do que explanações sobre um entidade coletiva que costumamos chamar de “humanidade”.

Consequentemente, hoje sustento um outro ponto de vista, mais razoável e menos infantil: admiro e tenho afeto por (algumas) pessoas que conheço. Ou seja, seres humanos específicos e familiares a mim. Não quer dizer que deseje o mal para os outros que não conheço ou que não me agradem. Só quer dizer que a concepção que tenho de coletividade vem principalmente da experiência e da troca que tenho com as pessoas do meu círculo mais próximo, especialmente com aquelas que me dão gosto conviver.

A humanidade, em contrapartida, tornou-se algo que reconheço apenas como uma abstração; serve para generalizar e extrapolar uma noção de coletividade. Porém, não tenho mais sentimentos e nem nutro expectativas com relação à essa tão surrada “humanidade”. Afinal de contas, essa ideia de entidade coletiva onde cabem todos os seres humanos é apenas isso: uma ideia. É um instrumento para refletir, não para se relacionar com o mundo e com as pessoas de fato. Para não criar dúvida, enfatizo: entre os seres humanos de verdade e a idealização de humanidade, fico com as pessoas de carne e osso, algumas.

Um adendo oportuno: arte, ciência, filosofia e religião são fontes para imaginarmos e discutirmos a humanidade — Shakespeare, por exemplo, retrata muito bem nossa “humanidade”—, mas não com o sentido de soma dos seres humanos, e sim como o que é próprio do ser humano; ou seja, humanidade, nesse caso, é aquilo que nos diferencia (de qualquer outra espécie ou ser vivo). E viva o ser humano com sua humanidade difícil de ser contemplada!

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